A mais recôndita memória dos homens: um romance que nasce como um clássico
por Alessandra De Blasi (@ale.de.blasi)
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Depois de ler as primeiras páginas de A mais recôndita memória dos homens percebi quanto tempo fazia desde a minha última leitura de uma obra-prima. Não à toa, esse romance de Mohamed Mbougar Sarr foi vencedor do Goncourt em 2021: o prêmio de maior prestígio da língua francesa. Obrigada, Nalu (@annalubraga) pela indicação que eu nem sabia que precisava.
No romance, seguimos o ponto de vista de Diégane, um jovem escritor senegalês radicado em Paris, que vive estagnado entre madrugadas de boemia intelectual – com outros escritores africanos – e a angústia de não conseguir produzir seu segundo romance. Em certa noite, Diégane aborda Siga D., uma autora de meia idade e muito prestígio – cujos livros de teor explícito dividem opiniões no establishment entre o choque e a admiração. Numa interação estranha e lasciva, Diégane põe as mãos no misterioso livro “O labirinto do Inumano”, de T.C. Elimane – livro esse que já era uma lenda entre os jovens autores; tanto pela impossibilidade de encontrá-lo quanto pelos escândalos em torno de seu autor.
Na estória, T.C. Elimane lançara “O labirinto do Inumano” na década de 30. A qualidade da obra rompera as barreiras invisíveis entre o Senegal a França, trazendo, pela primeira vez, reconhecimento e prestígio a um autor africano francófono. Pouco anos depois, uma acusação de plágio o fizera ser cancelado do meio literário, levando-o a desaparecer junto com seu controverso livro.
Essa cópia rara — talvez única — arrebata o jovem Diégane de tal forma, que o único caminho possível é seguir as pistas do misterioso escritor, descobrir a verdade e, possivelmente, um outro romance de sua autoria. Nessa busca, somos levados a diversos lugares e tempos. Acompanhamos gerações de uma pequena vila do Senegal e a relação quase unilateral de sua população com sua ex-colônia – a França; passamos pela Argentina nos anos 60, vivenciamos Paris em diversas épocas – inclusive durante a Segunda Guerra e, aos poucos, temas como colonialismo, segregação e abismos culturais emergem do plano de fundo para o tema central. E isso é construído brilhantemente de forma não-didática.
A escrita de Momamed Mbourgar Sarr, com sua formalidade e elegância, lembra mais os clássicos do que a literatura contemporânea. E considero isso uma grande proeza. Assim como um escultor que adiciona e tira matéria em busca da forma perfeita, me parece que o autor foi lapidando sua obra até criar esse romance complexo e pulsante.
Parágrafo de abertura:
De um escritor e sua obra, pode-se saber ao menos uma coisa: os dois caminham juntos pelo labirinto cujo destino se confunde com a origem: a solidão.
“A mais recôndita memória dos homens” foi produzido como um grande labirinto: quanto mais avançamos, penetrando em sua complexidade, mais ramificações e possibilidades encontramos. A construção da narrativa passa por diversos gêneros, mas sempre mantendo o tom uniforme que dá unidade à obra. Essa estrutura lembra também os meandros de nossa própria memória, onde alguns pensamentos brilham vivamente, enquanto outros parecem encobertos por um véu, perdidos no espaço-tempo.
Essa teia complexa parece extrapolar suas próprias fronteiras quando descobrimos que T.C. Elimane é baseado em um escritor real, a quem Mohamed Mbougarr Saar dedica sua obra. E se algo aqui lembrar Os detetives selvagens, isso também é intencional. Robeto Bolaño é uma das maiores referências literárias para Mohamed Mbougar Sarr, que extrai o título "A mais profunda memória dos homens" de um trecho de "Os detetives selvagens," usado como citação no início do livro.
Ao final, percebo que sabemos mais sobre T.C. Elimane do que sobre Diégane e, talvez, em seu centro, o livro seja sobre isso. Um jovem escritor obcecado em encontrar uma história lá fora, apenas para não olhar para [email protected]