A VEGETARIANA: protagonista sem lugar de fala
romance da sul-coreana Han Kang, vencedor do Man Booker International Prize
essa resenha foi originalmente publicada no extinto Medium da salvo, em outubro de 2020.
❝𝘍𝘰𝘪 𝘵𝘶𝘥𝘰 𝘵𝘢̃𝘰 𝘳𝘦𝘢𝘭. 𝘈 𝘴𝘦𝘯𝘴𝘢𝘤̧𝘢̃𝘰 𝘥𝘦 𝘮𝘢𝘴𝘵𝘪𝘨𝘢𝘳 𝘤𝘢𝘳𝘯𝘦 𝘤𝘳𝘶𝘢, 𝘰 𝘮𝘦𝘶 𝘳𝘰𝘴𝘵𝘰, 𝘰 𝘣𝘳𝘪𝘭𝘩𝘰 𝘥𝘰𝘴 𝘮𝘦𝘶𝘴 𝘰𝘭𝘩𝘰𝘴. 𝘗𝘢𝘳𝘦𝘤𝘪𝘢 𝘰 𝘥𝘦 𝘢𝘭𝘨𝘶𝘦́𝘮 𝘲𝘶𝘦 𝘤𝘰𝘯𝘩𝘦𝘤𝘪 𝘱𝘦𝘭𝘢 𝘱𝘳𝘪𝘮𝘦𝘪𝘳𝘢 𝘷𝘦𝘻, 𝘮𝘢𝘴 𝘤𝘰𝘮 𝘤𝘦𝘳𝘵𝘦𝘻𝘢 𝘦𝘳𝘢 𝘮𝘦𝘶 𝘳𝘰𝘴𝘵𝘰. 𝘘𝘶𝘦𝘳𝘰 𝘥𝘪𝘻𝘦𝘳, 𝘱𝘦𝘭𝘰 𝘤𝘰𝘯𝘵𝘳𝘢́𝘳𝘪𝘰, 𝘱𝘢𝘳𝘦𝘤𝘪𝘢 𝘵𝘦̂-𝘭𝘰 𝘷𝘪𝘴𝘵𝘰 𝘵𝘢𝘯𝘵𝘢𝘴 𝘷𝘦𝘻𝘦𝘴, 𝘮𝘢𝘴 𝘯𝘢̃𝘰 𝘦𝘳𝘢 𝘮𝘦𝘶 𝘳𝘰𝘴𝘵𝘰. 𝘋𝘪𝘧𝘪́𝘤𝘪𝘭 𝘥𝘦 𝘦𝘹𝘱𝘭𝘪𝘤𝘢𝘳. 𝘌𝘳𝘢 𝘧𝘢𝘮𝘪𝘭𝘪𝘢𝘳 𝘦 𝘥𝘦𝘴𝘤𝘰𝘯𝘩𝘦𝘤𝘪𝘥𝘰 𝘢𝘰 𝘮𝘦𝘴𝘮𝘰 𝘵𝘦𝘮𝘱𝘰… 𝘌𝘴𝘴𝘢 𝘴𝘦𝘯𝘴𝘢𝘤̧𝘢̃𝘰 𝘳𝘦𝘢𝘭 𝘦 𝘦𝘴𝘲𝘶𝘪𝘴𝘪𝘵𝘢, 𝘵𝘦𝘳𝘳𝘪𝘷𝘦𝘭𝘮𝘦𝘯𝘵𝘦 𝘦𝘴𝘵𝘳𝘢𝘯𝘩𝘢.❞
este é um dos sonhos contados pela nossa protagonista, Yeonghye. aliás, é só assim, pelo inconsciente, que a voz dela vem à tona no livro. sem lugar de fala na própria vida, a história dela é contada em três atos: o primeiro narrado pelo marido, o segundo pelo cunhado e o último pela irmã.
o conflito — juntando todas as pontas da família — começa quando Yeonghye decide parar de comer, cozinhar e servir carne, motivada e angustiada por uma série de pesadelos.
achei um livro violento.
a violência se dá não só por este sequestro de identidade, mas também pelas relações sexuais unilaterais, palavras e gestos, como o de enfiar carne goela abaixo.
também é um grito de liberdade.
tirar o sutiã, baixar a blusa, não falar, não comer. é uma maneira de não fazer o que se espera dela e de experimentar a liberdade total, uma vez que ninguém entende o seu significado.
é deixar de pertencer.
ela não pertencia aquele meio e, por uma motivação, decide desligar o fio que a liga à exigência de fazer parte a uma sociedade que, por razões pessoais, deixa de fazer sentido. ela rompe.
a decisão, pessoal e intransferível, sobre o que comer e o que não comer vira assunto de família. todos se sentem no direito de entender a escolha, julgar e determinar se a decisão é válida ou não! para entender este núcleo, vamos conhecê-los. vou pedir uma licença poética de não apresentá-los pelos nomes, apenas pela função ‘social/familiar’, como forma de protesto. uma vez que tiraram a identidade dela, tiro os seus nomes.
em junho de 2022, divulgamos um episódio no podcast ex-libris sobre esse livro. confira:
PARTE 1 — A vegetariana
o primeiro ato é narrado pelo marido. achava que não passaria da primeira página quando li:
— Acabei me casando porque ela não tinha nenhum charme especial, e também por não ter notado defeitos muito gritantes. Uma personalidade dessas, sem frescor, brilhantismo ou refinamento, me deixa CONFORTÁVEL.
whaaat? pensei: e agora? como vou participar do clube de leitura da salvo sem ler o livro. não vou conseguir ouvir este tipo de visão sobre a mulher (até porque, piora), imediatamente pensei que esta indignação era positiva em mim, revela que este tipo de comportamento já não passa despercebido e impune. sigamos.
a todo tempo, Yeonghye é julgada, comparada e criticada mentalmente pelo marido. ele quer alguém apenas para satisfazer os próprios caprichos. ele não se questiona o porquê da mulher ter parado de comer carne, ele questiona o motivo de ela ter feito isso com ele. com ele? sim, autocentrado, ego, superego e id voltados para o umbigo.
PARTE 2 — A mancha mongólica
este ato é narrado pelo cunhado, marido da irmã mais velha. tudo que o marido despreza em Yeonghye é maximizado aos olhos do segundo narrador. ele tem um desejo por ela, ou melhor, pela mancha mongólica que ela carrega como marca de uma infância que nunca findou, nas nádegas. a possibilidade deste sinal, que deveria desaparecer na idade adulta, ainda estar no corpo dela o deixa fascinado. vira obsessão e inspiração para o cunhado, que é artista. ainda que ele a elogie na descrição, ainda assim provoca desconforto, porque também a coloca numa posição de serva ao bel prazer, dele.
PARTE 3 — Árvores em Chamas
a irmã mais velha narra a última trajetória do livro. Yeonghye está cada vez mais conectada à natureza e desumanizada, a vida é um fardo. a condição humana oferecida a ela não cabe mais em seu corpo. neste capítulo, a irmã faz uma mea culpa e nos narra momentos da infância das duas.
neste trajeto, no meio da floresta, descobrimos que as duas gostavam de respirar uma atmosfera longe de casa. a natureza virava um refúgio. e a própria irmã, ao ficar diante dos traumas, se pergunta se ela também não poderia ter virado a vegetariana, vegetal, a irmã.
e, a partir da desumanização de Yeonghye, a irmã faz uma série de questionamentos a respeito das próprias escolhas: marido, profissão, estilo de vida. a vegetariana provoca uma reflexão generalizada, ao decidir romper com a jaula imposta a ela enquanto menina, mulher, filha e esposa na sociedade sul-coreana, mas, segundo a própria autora, são posições universais.
protagonista sem lugar de fala
uma das maiores violências é ter o direito de se expressar usurpado. Yeonghye nem tenta mais falar, porque sabe o seu dizer não é ouvido. não à toa, só se manifesta em sonho, porque o inconsciente não se cala.
paralelo com Dostoiévski
Yeonghye me lembrou uma protagonista de Dostoiévski, Nastácia Filíppovna. o rompimento de Nastácia com o que se esperava dela causa um reboliço ao longo das 700 páginas do romance ‘O idiota’, de 1869.
assim como Yeonghye, conhecemos passado e futuro de Nastácia por meio das falas e julgamentos alheios. como nos sonhos de Yeonghye, Nastácia manifesta seus sentimentos mais profundos por meio de cartas.
150 anos separam duas protagonistas sem lugar de fala, mas com impacto profundo por onde passam.
me chamo Caroline Holder, sou jornalista, editora de Política e Economia na GloboNews. apaixonada por letras, livros, palavras e podcasts. co-criadora da @salvoconteudo.