ao relatar outros encontros promovidos pela salvo, já dissemos que ler é uma experiência solitária, mas que paradoxalmente nos une às pessoas. e foi através da troca de recomendações e conversas interessantes que convidamos a Ligia Thomaz Vieira Leite para escrever esse artigo especial sobre o autor homenageado da 22ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acontece entre 9 a 13 de outubro.
João do Rio foi tema de sua dissertação de mestrado pela PUC-Rio, publicação que se aprofundou no papel do autor na consolidação da República no Rio de Janeiro, através de uma visão enriquecedora sobre como a cidade se molda e é moldada por suas narrativas literárias.
Ligia é socióloga, jurista e fascinada pelas conexões entre o campo intelectual e o mundo da vida cotidiana. talvez você já a conheça, pois ela é fundadora do perfil gastronômico @pracomernorio.
nesta colaboração, vamos dar um passeio através dos olhos de João do Rio, explorando como suas crônicas capturam a alma vibrante das ruas cariocas: histórias do passado ainda ressoam nas transformações do presente.
Quem anda pelo centro do Rio de Janeiro hoje se depara com prédios de diversas épocas históricas. De casas do período colonial a prédios recém-construídos, o passeio pela área central da cidade revela quase uma viagem através das diferentes eras da história do Brasil. E quem se interessa por literatura pode ter parte de seu passeio guiado por um dos mais ilustres cronistas da cidade: João do Rio.
Se você ainda não conhece João do Rio, talvez agora seja uma boa hora para conhecer. Pseudônimo de João Paulo Coelho Barreto, João do Rio foi um dos mais importantes escritores brasileiros do início do século XX. Nascido de uma família interracial de classe média urbana, Paulo Barreto era um homem gordo, negro de pele clara e lido por seus contemporâneos como homossexual.
Não é de se admirar que tenha enfrentado tantas barreiras para ingressar na intelectualidade carioca, muitas das quais foi capaz de superar graças à sua capacidade de observação. Trabalhou durante toda sua vida nos jornais da capital, e se consagrou ao unir uma forma textual já consolidada no exterior aos temas do cotidiano carioca, inaugurando, assim, a crônica moderna no Brasil.
Em vida, o autor publicou mais de 20 livros e milhares de crônicas em diversos jornais da capital. Algumas das melhores entre elas foram reunidas pela editora @carambaia em GENTE ÀS JANELAS, uma publicação que reúne escritos de diversos períodos de sua vida e possibilita aos novos leitores conhecerem mais do estilo do autor e sua circulação pela cidade do Rio de Janeiro, em uma edição extremamente bem trabalhada.
"[...] o cordão é o Carnaval, é o último elo das religiões pagãs, é o bem conservador do sagrado dia do deboche ritual; o cordão é a nossa alma ardente, luxuriosa, triste, meio escrava e revoltosa, babando lascívia pelas mulheres e querendo maravilhar, fanfarrona, meiga, bárbara, lamentável"
Recuperar trajetos literários em uma cidade que sofreu tantas transformações quanto o Rio não é tarefa fácil. Ensaiar um trabalho deste tipo tendo em conta a obra de um autor tão dedicado à exploração da cidade quanto João do Rio, menos ainda. Essa tentativa, porém, adiciona novas camadas à experiência urbana e enriquece os significados da própria vivência na cidade.
São incontáveis as ruas, bairros e praças citados pelo autor ao longo de sua obra e, graças às reiteradas reformas pelas quais a cidade passou, nem todos são ainda hoje identificáveis na cartografia do Rio de Janeiro. Os que foram, porém, e estão presentes no novo livro da Carambaia, podem ser encontrados neste mapa e alguns merecem destaque em nosso passeio –– muito por suas reiteradas aparições nos textos do autor ao longo da vida, mas também pelos marcos que representam na paisagem urbana carioca.
Avenida Central (atual Rio Branco)
Símbolo do avanço do poder republicano, a Avenida Central (atual Rio Branco) é ausência marcada em muitos dos textos de João do Rio, inclusive no meu livro favorito, A alma encantadora das ruas. Em GENTE ÀS JANELAS, contudo, a Avenida marca seu lugar simbólico quando aparece, em geral em contraposição a outros lugares da cidade, sendo esses as casas das ruas Camerino e Senhor dos Passos ou as janelas da Cidade Nova. Coroando esse Rio idealizado, o autor narra os planos de construção de seu símbolo maior, o Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Nessa dinâmica entre presença e ausência, transitamos com João do Rio pelas duas faces de um Rio de Janeiro em que, apesar dos projetos segregadores que avançavam, diferentes classes sociais ainda frequentavam muitos dos mesmos espaços. Nem só republicano e civilizado, tampouco apenas desordeiro, o Rio de João do Rio é um espaço onde suas duas faces estão em permanente disputa sobre os significados da vida na cidade.
Saúde e Gamboa
Em contraposição explícita com a imagem da Avenida Central estão as representações da região da Saúde e da Gamboa. Citados diversas vezes ao longo do livro, os bairros, que hoje se destacam por abrigar muito da vida noturna carioca, são, em Gente às janelas, frequentemente associados à miséria, à malandragem e à desordem, além de à capoeira. São citados o Morro da Providência – ainda hoje um símbolo de resistência na luta por moradia no Rio de Janeiro – e alguns bares e restaurantes da região.
Os dois bairros faziam parte da região da Pequena África e, em um momento em que as elites cariocas buscavam associar a cidade a uma ideia de branquitude europeizada, não é de se estranhar que, tanto a Saúde, quanto a Gamboa, tenham suas imagens tão associadas à criminalidade e à desordem. Em João do Rio, porém, embora muito desse racismo se reproduza, são sublinhados os pontos de interseção desse mundo com o mundo da cidade "ordenada" republicana, como quando destaca a associação dos delegados aos assassinos do Morro da Providência e a frequência de "cidadãos ilustres" às casas de candomblé da região.
Campo da Aclamação/Senador Eusébio/Palácio da Prefeitura/Rua General Câmara/Praça Onze de Julho (demolidas para a construção da Presidente Vargas) e Estação Central
Eixo citado em alguns dos textos reunidos no livro, a Avenida Presidente Vargas é tudo o que sobrou de uma série de ruas e praças com grande potencial de sociabilidade no coração do Rio. Muitos desses espaços são citados em toda a obra de João do Rio. A Rua Senador Eusébio, a General Câmara, o Palácio da Prefeitura e a Praça Onze de Julho são alguns dos locais que, citados pelo autor, foram demolidos poucos anos depois para dar lugar à monumental avenida que hoje corta o centro da cidade.
Embora essas ruas e praças fossem espaços de encontro entre integrantes das camadas mais privilegiadas e das camadas populares, ambas então frequentadoras do centro, estes locais foram substituídos por uma gigantesca avenida em que a permanência e o convívio deram lugar à circulação – preferencialmente de veículos motorizados – e muito da vivacidade do ambiente se perdeu.
O que resta dentre os locais citados no texto é o Campo da Aclamação (atual Praça de República ou Campo de Santana), embora em tamanho menor do que tinha à época, e a Estação Central, ou Central do Brasil, que embora se mantenha no mesmo local e com função similar, foi completamente reformulada.
Morro do Castelo e arredores
Antes de terminar, uma ausência fundamental na paisagem carioca contemporânea não poderia deixar de ser notada: o Morro do Castelo. Delimitado pela Avenida Beira-Mar, a Rua São José, a Dom Manuel e a Rua México, o Morro do Castelo foi um dos pontos de fundação oficial da cidade ainda no século XVI e é um dos protagonistas – o morro e seus arredores – de um dos livros mais conhecidos de João do Rio, A alma encantadora das ruas. Em Gente às janelas, o morro é descrito como abrigando as fumeries de ópio, alguns cortiços, hospedarias e estalagens velhas, assim como botequins e grupos de vagabundos e desordeiros. Seus arredores, são descritos como ambientes lúgubres.
O morro foi completamente arrasado em 1922 e de seu espaço só nos restam hoje as descrições de escritores que por ali se aventuraram e um pequeno trecho de sua ladeira, a Ladeira da Misericórdia. Na região, preservou-se também, entre tantos arrasamentos, a Santa Casa de Misericórdia, uma das coisas lúgubres da cidade citadas por João do Rio.
"Mas vi ser à janela que o Rio vive"
Ao flâneur contemporâneo – ou à flâneuse contemporânea – o texto de João do Rio desvela uma outra cidade escondida nos escombros daquela que o projeto republicano insistiu em arrasar. Uma cidade que pode até se ver nos cafés, confeitarias e boulevards de automóveis, mas cuja verdadeira beleza se encontrava nos espaços em que todo aquele afrancesamento era permanentemente desafiado e ressignificado: a rua, o encontro, a circulação pela cidade. Uma cidade que, ainda hoje, apesar dos projetos em contrário, segue ocupando seu espaço e encontrando ali sua maior potência. E talvez esteja aí a grande atualidade da obra de João do Rio.
a produção desse conteúdo teve apoio da editora @carambaia. as fotos foram produzidas pela @nastachadeavila em conjunto com a Ligia, em um belo dia de sol, na cidade maravilhosa.
que beleza de texto e pesquisa, adorei!
Que incrível! Amei entender sobre essa relação do escritor com a cidade