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"É assim que se constroem as grandes histórias – com viradas estonteantes.
E acontecimentos inesperados."
A constatação feita pelo bibliotecário Oshima durante uma conversa com o jovem Kafka Tamura, um dos protagonistas do escritor japonês Haruki Murakami, bem poderia sintetizar "Kafka à beira-mar", romance publicado pelo autor em 2002 e tido como uma das obras mais ambiciosas lançadas por Murakami. Contudo, apenas se fosse mesmo possível consolidar qualquer tipo de epítome a respeito de um livro tão labiríntico e metafórico.
Gatos falantes, peixes que caem do céu e pessoas com dons paranormais compõem um universo fabuloso – nas duas acepções que o termo implica – em que aspectos como identidade, memória e certa dicotomia entre realidade e onirismo dão a tônica das quase 600 páginas da obra (na edição em português publicada pelo selo Alfaguara).
A jornada de dois personagens, a do próprio Kafka e a do idoso Satoru Nakata, rumo a um destino desconhecido se entrecruzam em reflexões a respeito da existência, da nossa (im)permanência nos tempos e do que guardamos e esquecemos. Em tons de odisseia, com referências a tragédias gregas, à cultura pop japonesa e ao universo da música – uma das maiores e melhores características de Murakami ou então um excelente fio condutor pela produção literária do autor –, Kafka, um adolescente retraído e solitário foge de casa com a intenção de escapar de uma profecia-maldição revelada pelo próprio pai. O também desejo de encontrar a mãe e a irmã, que supostamente o abandonaram em seus primeiros anos de vida, o conduzem a uma biblioteca misteriosa, gerida por Oshima.
"Não sou do tipo que lê rápido. Sou daqueles que acompanham uma obra linha por linha, frase por frase. Dos que apreciam o estilo. Se não me agradar, paro de ler."
Em paralelo à saga do jovem Kafka, Murakami nos apresenta o simpático Nakata, um homem que foi vítima de um estranho fenômeno que afetou a sua capacidade de ler e escrever, mas que lhe rendeu, por outro lado, uma habilidade um tanto inusitada: o dom de falar com gatos.
São 50 capítulos de uma experiência em que a emoção produzida a partir do que se lê parece estar na superfície de cada palavra escrita. Ou seja, como se ela de alguma maneira sempre se antecipasse, em milésimos de segundo, à apreensão da narrativa. A sensação de se pisar em um pequeno montinho de areia pode ser acrescentada a uma sinopse afetiva da obra: você sente, é real, até que deixa de ser no mesmo exato momento, em um devir imediato. Existiu, existe, não mais como você experienciou. O tempo é um importante conceito em um livro considerado um dos melhores exemplares de uma literatura que tangencia o surrealismo para metaforizar a caminhada da vida.
Evidentemente, as marcas de Haruki Murakami estão por toda parte em "Kafka à beira-mar": do fundo musical, como citado acima, ao perfil demarcado de seu protagonista – aliás, inspirado no aspecto simbólico dos corvos e em, claro, Franz Kafka. Do arquétipo da misteriosa "smart girl" à solidão, ou à menção aos prazeres proporcionados pelo exercício físico – o escritor corredor e nadador que é.
Li apenas seis obras do autor, sendo a primeira delas essa viagem empreendida por Kafka e Nakata. E, sem nenhuma dúvida, afirmo: "Kafka à beira-mar", na minha visão, segue sendo o trabalho mais importante, imersivo e de fôlego de Haruki Murakami.
"Todos nós perdemos coisas preciosas ao longo da vida – diz ele quando enfim o telefone pára de tocar. – Oportunidades ou possibilidades importantes, emoções que nunca mais experimentaremos. Esse é um dos significados da vida. Mas dentro de nossas mentes – eu ao menos acho que é dentro das mentes – existe um pequeno aposento destinado a guardar tais preciosidades na forma de lembranças. Deve ser um aposento semelhante àquele em que guardamos o acervo desta biblioteca. (...) Temos de varrer o aposento, de arejá-lo, de trocar a água dos vasos de flores. Em outras palavras, você vai viver para sempre dentro de sua própria biblioteca."