O AGENTE SECRETO e o gesto de fazer memória
Kleber Mendonça Filho transforma o cinema em permanência coletiva, onde lembrar é existir junto
o cinema é poderoso. toda escolha do que se filma e do que se silencia é ato político. escrever sobre O AGENTE SECRETO, abrir rodas de conversa em torno dele, é acreditar na força do cinema nacional. e isso importa muito. assim como aconteceu com AINDA ESTOU AQUI, quando nos unimos em um mesmo objetivo e espalhamos a discussão em diferentes linguagens, foi gesto de afirmação cultural (somos também os maiores produtores de memes do mundo). esse movimento só acontece quando valorizamos nossas produções e nos reconhecemos retratados em nossa própria complexidade.
precisamos ver o frevo no tapete vermelho.
assumir uma visão afirmativa diante deste filme é assumir também o compromisso de reconhecer que a nossa história, contada por nós, pode alcançar públicos que ainda não se enxergam nela. há orgulho em se ver na tela, mas há também a urgência de projetar uma narrativa coletiva que resista às tentativas de apagamento. e olha só: o filme de Kleber Mendonça Filho é exatamente sobre isso, como já se anuncia em toda a sua filmografia.
o cinema nacional, quando se coloca nesse lugar, deixa de ser apenas arte. torna-se poder de memória, pertencimento simbólico de uma nação que insiste em existir.
vamos conversar sobre o filme?
essa resenha foi escrita por Fabíola Amaral (@fabiolaamaral). você também pode estar aqui. escreva para [email protected] enviando a sua ideia de pauta.
A memória não existe sozinha. Mesmo quando buscamos no mais secreto da lembrança, no mais íntimo, ainda assim só reconhecemos porque partilhamos linguagens, códigos sociais e espaços. O cheiro de bolo assado, uma música no almoço de domingo, um joelho ralado na infância. Não são lembranças individuais. Sempre existe o outro, o contexto onde nos inserimos.
O cinema é uma das fontes mais potentes de construção de memória coletiva. Uma rua em cena pode nos despertar memórias urbanas e nos transportar para uma cidade, mesmo que nunca tenhamos estado lá.
E essa é a importância do novo filme de Kleber Mendonça Filho, O AGENTE SECRETO: um ato de pertencimento pela memória.
Lembrar é pertencer. Quando o diretor evoca o Brasil de 1977, no ápice da ditadura militar, nas referências culturais, nas lendas urbanas e nas relações de poder, ele conecta a narrativa pessoal ao tecido coletivo. A força política da lembrança não é apenas revisitar um passado, mas disputar qual passado merece permanecer. Sua escolha é não nomear a ditadura na narrativa, mas representá-la pelas figuras autoritárias, pela violência extrema e pelos refugiados que criam novas identidades para sobreviver.
O AGENTE SECRETO é sobre a memória que insiste.
Este é o filme mais ousado do diretor. Combina linguagens como suspense ao estilo thriller, drama, uma comédia à nossa maneira e traços do fantástico, para narrar a história de um Brasil que ainda reconhecemos hoje. As transições não nos perdem: elas entrelaçam a investigação de temas que permanecem atuais. Mendonça Filho nos transforma em agentes investigadores em três atos. Cada ato aprofunda o personagem, nos ambienta no espaço e detalha indivíduos e suas relações até chegar à preservação documental do ser. Ali, existir é ter o nome no registro.
Já na primeira cena, conhecemos Marcelo (Wagner Moura). Sentimos o calor, a poeira no rosto e a tensão ao ver um corpo estendido no chão de um posto de gasolina. Policiais surgem para evidenciar a desconfiança nas instituições públicas e o descaso com a vida, já que o corpo permanece ignorado há dias.
Aos poucos, o Carnaval se infiltra na narrativa: primeiro o susto pelas fantasias descontextualizadas apresentadas a quem chega na cidade, depois pelas purpurinas, até nos lançar na folia atravessada por Marcelo.
Acompanhamos sua chegada ao Recife, o acolhimento na comunidade, as lembranças da vida passada, o reencontro, a esperança de futuro. Wagner Moura se entrega com naturalidade às cenas com Dona Sebastiana (Tânia Maria), carismática em cada aparição como líder da comunidade que o abriga. O ritmo alterna entre a reconstrução da vida e a busca de vestígios dela. Demoramos quase uma hora até sabermos quem é o personagem Marcelo.
A filmografia do diretor se faz presente, como se todas as realizações anteriores o conduzissem até aqui. Referenciando os espaços físicos em relação aos personagens. Em seu documentário RETRATOS FANTASMAS, cinemas de rua e a cidade do Recife são quadros sociais de uma história pessoal e coletiva. Assim como em outras obras, o diretor explora perseguições hollywoodianas e jorros de sangue, com críticas ao consumo cultural externo e à visão preconceituosa que divide o país em suas regiões.
Os personagens secundários têm camadas. Seu Alexandre, projecionista e sogro de Marcelo, ganha destaque, sendo personagem homônimo de RETRATOS FANTASMAS, Mendonça Filho oferece continuidade e respeito, lembrando que herança é feita também de vozes marginais.
A ambientação é detalhada e vívida. Nos transporta para um tempo reconhecível, mesmo distante da experiência individual. Para compreender todas as camadas, é preciso referências da época e da própria Recife. Há lendas urbanas, como a “perna peluda”, usadas como doutrina de comportamento; há ecos de filmes como TUBARÃO (1975), que retorna às telas, e A PROFECIA (1976), que assombra a narrativa como prenúncio. Há também o reflexo cruel de fatos que seguem atuais, como a morte do filho de uma trabalhadora de serviços gerais enquanto estava sob a responsabilidade da empregadora.
O cinema aqui é ativo político.
A técnica do anamórfico é utilizada para ampliar os enquadramentos na fotografia, preenchendo os espaços em tela. É preciso ficar atento. Há um aproveitamento de toda cena, como se a ação pudesse explorar pontos fora do eixo principal.
O jornal surge como símbolo, reiterando, nas manchetes, a violência banalizada com “91 mortos no Carnaval”. É registro e denúncia. Assim como Marcelo, designado para trabalhar em um cartório de registro de identificação, busca documentos da mãe como prova da sua vivência, querendo descobrir sem ser descoberto. A memória é guardada em papéis, mas também se faz de silêncio, apagamento e risco.
Há muito subtexto. O filme convida a revisitar, não se esgota em uma única exibição. Suas imagens exigem atenção lenta, pois guardam detalhes que se revelam apenas no intervalo do tempo. Ao sair da sala, levamos fragmentos que retornam sem aviso, reorganizando nossa percepção da história e da cidade.
Kleber Mendonça Filho transforma o cinema em testemunho vivo, capaz de resgatar, confrontar e reinscrever passados que tentam ser apagados. Não assistimos apenas a uma narrativa de época, mas à construção de uma herança comum. Ao convocar lembranças que nos ultrapassam, o filme nos lembra que só existimos plenamente quando partilhamos o ato de lembrar.
Fabíola Amaral (@fabiolaamaral) escreve a partir do encontro entre cinema, literatura e filosofia. atua há mais de quinze anos em comunicação e marketing, com olhar antropológico para a cultura e arte. seus textos buscam o que resiste na memória e no corpo, cruzando arte e pensamento como modos de compreender a existência.
E a vontade de correr pra assistir esse filme 🍿 fica como, minha gente??? Arrasou demais!