essa resenha foi escrita pela psicanalista Amanda Villas-Bôas, que contribui regularmente com diversos projetos da salvo.
“O peito oco” (2023), romance de estreia da psicanalista @suzanaamorim___, participante da 8ª Edição do Prêmio Kindle de Literatura (realizado em parceria com o Grupo Editorial Record e TAG Experiências Literárias), fala de uma mulher que acaba de ter uma filha e, contrariando a sua expectativa, não se sente preenchida.
Espantada com o vazio no qual a maternidade a lança, a protagonista deseja se reencontrar. E a própria criação deste livro faz parte desse processo, uma vez que se trata de uma obra de auto-ficção.
A história se constrói alternando passado e presente, tecendo os ideais de vida da juventude com as duras responsabilidades da vida atual como mãe. O estilo é cortante, com frases curtas e cirúrgicas, que conferem um toque de objetividade sem sentimentalismo a um tema tão sensível. Esse contraste já se percebe de cara, na primeira cena do livro, que é a descrição nua e crua do parto. Um parto não-instagramável, não-fotografável e não-filmável. Um parto duro, como são os partos reais. Nenhum personagem do livro tem nome, o que, ao mesmo tempo, remete a essa frieza, ainda que permita uma profunda identificação com os personagens.
Tendo acompanhado um pouco dos bastidores da criação do livro, pude testemunhar como a sublimação através da escrita teve um papel de elaboração deste puerpério. Mas, ainda que se trate, evidentemente, de uma depressão pós-parto, tenho a impressão de que a personagem já vivia uma depressão antes mesmo da gravidez. Uma depressão pré-parto, da qual ela imaginava que iria se livrar ao se tornar mãe. Para ela (e, talvez, para muitas mulheres), a maternidade entrava como uma resposta a um sentimento de vazio existencial, de falta de propósito, de não saber direito quem se é.
A tensão eclode justamente nesse ponto: quando achava que a maternidade a salvaria de uma crise de identidade, ela justamente escancara e aprofunda esta crise. Mesmo virando mãe, ela não se sentiu mãe. A resposta não veio. Não houve salvação. E agora?
Em “Luto e Melancolia” (1917), ensaio em que Freud fala sobre o que hoje chamamos de “depressão”, ele reconhece as similaridades entre os estados de luto e de melancolia, mas com uma diferença fundamental: no luto, a pessoa sabe o que perdeu; mas, na melancolia, não se sabe o que foi perdido - daí a dificuldade de sair desse estado. A sensação é de estar perdido de si mesmo. E, ainda, essa perda não precisa ser, necessariamente, de uma pessoa. Podemos estar de luto ou entrar em melancolia pela perda de outros objetos, como, por exemplo, um ideal.
A minha interpretação é que a depressão relatada neste livro é pela perda brutal de um certo ideal de maternidade, que estava tão fortemente atrelado a uma certa identidade como sujeito. Esse tema tem aparecido cada vez mais no debate público, com centenas de exemplos de livros, filmes e estudos denunciando as cruéis idealizações da maternidade e tocando no maior tabu, no ponto nevrálgico dessa experiência, que é um possível arrependimento pela decisão. Um exemplo é “A Filha Perdida”, filme sobre o qual fiz resenha para salvo há algum tempo.
A propósito: é interessante perceber como (ao menos assim me parece) a maternidade obriga a mulher a ressignificar a sua relação com a própria mãe e revisitar o seu lugar de filha. Então é claro que, assim como no filme, neste livro o lugar de filha vai aparecer com destaque também.
A expectativa, assim, era de que a maternidade fosse preencher um vazio no peito (que, na minha hipótese, já existia) e deixá-lo repleto de um amor incondicional. A idealização era tão grande que, quando a filha nasce, o que foi imaginado não se concretiza, então o peito fica oco. Esse peito, oco, não é só o seio materno que talvez não queira amamentar. Ele remete a uma sensação de vazio mais geral, de uma aridez de quem não encontra os recursos para alimentar não só o bebê, mas a sua vida. Ao perder um ideal tão estruturante de um Eu, a própria noção de Eu desmorona também.
Mas e aí... tem saída?
Ainda que não tenha um “final feliz” (pelo contrário, achei o final do livro um verdadeiro soco no estômago), acho que a obra é otimista num sentido mais existencial. Porque ela é um sinal de apego à vida.
Seguindo um pouquinho mais em “Luto e Melancolia”, Freud sugere quais seriam as saídas para o luto: diante da dolorosa constatação da realidade da perda de um objeto (que, de novo, pode ser uma pessoa, um ideal etc.), elaborar um luto seria começar a difícil retirada da libido deste objeto, para passar a investir em outras coisas. Libido, para psicanálise, não tem um cunho exclusivamente sexual (como no senso comum), mas é uma espécie de energia de ligação, atenção, amor que investimos nas coisas e que, portanto, nos vinculam a elas. E à vida.
E, para a melancolia, qual seria a saída?
A saída para a melancolia é entrar em luto.
“O peito oco” é, então, um livro-luto. Não só como o produto desse processo, mas também como o próprio processo, em si.
É uma história profundamente tocante, que escancara as problemáticas maternas (e, sobretudo, relacionais), com um toque de ironia e estilo cru. Como na própria experiência de elaborar um luto, o livro vai e volta no tempo. É construído num formato de flashback e flashforward constante, como acontece mesmo quando estamos nesse estado. Parece que vamos fazendo uma espécie de retrospectiva do que foi vivido (não é à toa que fazemos tanto isso nos finais de ano), lembrando cenas, revivendo momentos. A memória vai e volta toda hora naquela perda, até que gradativamente ela vai perdendo força...
E é aí que se abre espaço para investir em novos objetos, como, por exemplo, escrever um livro. Com a perda do ideal de maternidade e com a crise de identidade, nasce uma Suzana escritora.
“O peito oco” está disponível no Kindle e, em breve, vai ganhar uma versão impressa.
Amanda Villas-Bôas é psicanalista, membro do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo), e contribui regularmente com a salvo através de análises, dicas e críticas. ouça os episódios dos nossos podcasts em que ela participa (são os mais ouvidos!):
SOBRE A AUTORA
Suzana Amorim é psicanalista, membro do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, formada em Psicologia pelo Mackenzie e em Teatro pelo Macunaíma. com atuação clínica em consultório particular e anterior trajetória corporativa, O peito oco é sua estreia na literatura.