com a proximidade do próximo encontro do nosso clube de leitura remoto sobre o lançamento Salvar o fogo, decidimos revisitar essa entrevista originalmente publicada no extinto Medium da salvo, em 6 de janeiro de 2021.
“Se for de paz, pode entrar em Água Negra”
A frase de boas-vindas foi dita pelo autor baiano, um convite aos leitores.
A alusão à placa de Bacurau, onde se passa o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, nos lembra o ponto alto do romance: a resistência.
A história de Bibiana e Belonísia é uma espécie de futuro do passado, uma realidade que deveria ter acabado com o fim da escravidão, mas que ainda ronda muitos brasileiros, sem acesso à terra e sem remuneração pelo trabalho.
“O racismo estrutura uma sociedade desigual utilizando os argumentos mais vis, baseado nas nossas diferenças. Sem dúvida um monstro a ser derrotado.”
Publicado em agosto de 2019, ‘Torto Arado’ coleciona prêmios: Leya, Jabuti e Oceanos. Está na lista dos mais vendidos, na porta de bater as 30 mil cópias [informação atualizada em 3/7/23: o livro já ultrapassou as 400 mil cópias].
Para conhecer mais criador e criatura, a salvo bateu um papo com Itamar Vieira Jr — baiano, pesquisador e servidor público, que resolveu tirar as referências femininas da cabeça e colocá-las em letra.
Em que ponto você acha que Torto Arado se encaixa na história de todos nós, principalmente brasileiros?
É a história do povo brasileiro, de nosso povo. Mesmo que alguém não seja negro ou quilombola há de reconhecer que temos uma história coletiva compartilhada. Para que alguém ocupe uma posição de privilégio na sociedade, é preciso que outros sejam explorados e subalternizados. Mesmo que alguém pense que essa não é a sua história, se tiver sensibilidade poderá descobrir que é, sim.
O que você acha que agrada tanto o leitor na sua narrativa, seria uma identificação, mesmo que inconsciente?
Não saberia responder, mas posso confessar um desejo constante no meu processo de escrita: contar uma história da forma que muitas vezes a escutei das pessoas mais simples, nos rincões mais remotos do país.
Você chegou a estudar a fundo o Jarê, esta tradição teria um pé no realismo mágico?
Estudei, sim. Primeiro ouvindo relatos. Depois frequentando locais de celebração. Por último imergindo nos poucos estudos acadêmicos sobre o tema. Interessava-me sobremaneira os laços de solidariedade e reciprocidade que advém de sua prática, sobre como o Jarê permitiu que comunidades em situação de vulnerabilidade atravessassem suas mazelas sociais sempre resistindo.
A resistência, como vimos em Bacurau, e vemos em Torto Arado é mais para o real ou para o fictício? O que o inspirou, um fato ou uma vontade?
O fato de povos e comunidades tradicionais chegarem ao século XXI vivos, contrariando todo processo de aniquilação colonial e do estado brasileiro moderno, é um signo da resistência. Essa foi a principal inspiração. Se meus avós, meus pais e eu chegamos até aqui foi graças à resistência de nossos antepassados.
O que Bibiana e Belonísia representam?
É um retrato do autor das mulheres fortes que encontrou em seu caminho: as da casa, as das ruas e as do campo.
Qual a importância das questões como oralidade, tradição, acesso à terra e racismo dentro da trama?
Eu queria contar uma história a partir da perspectiva das minhas personagens. Para elas, a oralidade e a tradição têm um significado especial. O acesso à terra é uma questão vital e que diz respeito a todos nós, embora não tenhamos essa consciência. E o racismo estrutura uma sociedade desigual utilizando os argumentos mais vis, baseado nas nossas diferenças. Sem dúvida um monstro a ser derrotado.
Que elementos você acredita que fizeram do seu primeiro romance um vencedor: de prêmios e de público?
É uma pergunta difícil, mas posso contar aquilo que me mobilizou a escrever: Há algo muito humano que nos alcança de maneira íntima independente de nosso lugar no mundo. Talvez seja uma história que toque em questões universais e dizem respeito à nossa coletividade, despertando essa experiência de conexão que é tão humana.
Porque tomou “a pena na mão” para escrever este romance aos 40 anos, o primeiro de uma lista?
Foi quando encontrei um tempo de relativa tranquilidade, sem os compromissos acadêmicos, sem a sobrecarga de trabalho que sempre tive para me manter vivo. A história estava viva dentro de mim e com disciplina e trabalho pude escrevê-la para que outras pessoas pudessem fruir.
O que você diria aos leitores que vão ter a companhia de Torto Arado pela frente?
Se for de paz, pode entrar em Água Negra.
me chamo Caroline Holder, sou jornalista, editora de Política e Economia na GloboNews. apaixonada por letras, livros, palavras e podcasts. co-criadora da @salvoconteudo.