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Todos somos sobreviventes. Mas estamos tão atribulados com nossas tarefas e distraídos por redes sociais, que o modo default é não refletir sobre a surrealidade do que vivenciamos como espécie. A Covid-19 não foi a primeira – e infelizmente não será a última – pandemia que a humanidade verá e, por mais que seja um evento recente, nossos dias seguem sem que pensemos muito sobre isso. E é exatamente por isso que considero Uma dor perfeita, do escritor Ricardo Lísias (@rlisias), uma obra tão interessante.
Narrado em primeira pessoa, o livro é um relato do que o escritor vivenciou enquanto esteve internado no hospital durante o auge da pandemia de Covid-19. A maior parte das pessoas ao meu redor tiveram a sorte de ficar doentes em casa, afetadas pela versão mais branda da doença que, mesmo assim, já era terrível.
Existir um escritor talentoso que tenha sido internado por diversas semanas, passado pela UTI e (ufa!) sobrevivido para contar essa história é – de um jeito meio distorcido – um privilégio para nós, leitores. Se os livros são portais para experimentarmos diferentes realidades, essa é uma das mais significativas da atualidade.
A primeira parte do livro é um turbilhão; escrito como o fluxo de consciência de um homem já delirante pela febre. Esse artifício literário faz todo o sentido dentro da narrativa porque nos leva a sentir, junto com o autor, essas dores insuportáveis no corpo, o leito encharcado do próprio suor e nossas mentes confusas dentro de um mal estar que parece nunca passar. Enquanto lemos, podemos quase sentir na pele os horrores da doença em sua forma mais agressiva e, ao menos para mim, esse início evocou as lembranças de medo e impotência que eu sentia ao ler os jornais, ao ver o mundo deserto pela minha janela, ao tentar não respirar no mercado ou elevador, mesmo que todos estivéssemos de máscara.
Não pude deixar de comparar os sintomas descritos no livro com os que eu senti nas duas vezes que o vírus me infectou – só que no meu caso, por sorte, tive os sintomas leves. Por isso mesmo considero o relato do Ricardo Lísias tão potente. Essa pandemia sempre fará parte da nossa história, e eu quero entender como foram outras experiências desse período.
Depois dos primeiros dias, quando o autor melhora (e isso não é spoiler; afinal, ele precisava estar vivo para escrever o livro), o relato passa a ter uma narrativa mais organizada e linear. Ele se torna capaz de observar os movimentos e interações de pacientes, enfermeiras, médicas e médicos ao seu entorno, e até começa a criar uma relação com alguns deles.
Conseguimos ter uma certa noção de como era o funcionamento de um hospital particular de São Paulo durante a pandemia, mas, talvez por respeito à privacidade alheia, ou quem sabe porque fiquemos ensimesmados quando doentes, senti falta de saber em mais detalhes quem eram e pelo que passavam os outros pacientes que dividiram o espaço com o autor. Ele menciona três deles e o que acontece com cada um, mas sem descrever suas interações ou o que pôde observar do comportamento deles. Outro momento interessante do relato é quando o autor consegue forças para voltar a mexer em seu celular, por onde interage com a família – e todo o resto do mundo.
Enquanto ainda é um esforço manter o fôlego para falar com sua esposa e filho, não param de chegar mensagens de conhecidos e curiosos que ficaram sabendo sobre sua internação pelas redes sociais. Alguns insensíveis chegam a ironizar seu estado de saúde pelo autor ser um dos que levantou a bandeira para ficarmos em casa.
Além de lidar com tudo isso, o autor precisa ainda dar uma nova forma à relação com seu filho, para que o menino não o veja em um de seus acessos de “tosse prateada” – descrição bastante visual empregada pelo autor. Encontraram esse vínculo através de um jogo online proposto pelo filho, e assim eles se encontravam todos os dias nesse ambiente virtual.
Ricardo reflete, ainda, sobre o quanto a disparidade social se mostra em sua forma mais cruel em momentos como esse. Ele confessa a culpa que o assombra por ser tratado em um hospital particular, com toda a atenção e cuidado possíveis, enquanto assistia notícias sobre gente que morria sem nenhum atendimento, mesmo depois de ter tentado ajuda em diversos hospitais públicos. Mas “Uma dor perfeita” não se propõe a ser um retrato amplo da pandemia, pelo contrário: o livro é intimista e aprofunda no recorte específico vivenciado pelo autor, contendo também suas próprias reflexões.
De forma geral, é uma leitura fácil e prazeirosa. Digo “de forma geral” porque a primeira parte é desconfortável, como deveria ser, já que a escrita caótica nos leva a ficar no mesmo estado de confusão do autor. Depois disso, o livro se torna mais calmo, reflexivo, inclusive com conversas do autor com o próprio vírus. Considero “Uma dor perfeita” um importante relato sobre a pandemia de Covid-19 vista de dentro de um hospital e de dentro de um corpo afetado pela doença. Vivemos junto com o autor a tentativa de equilibrar o medo da imprevisibilidade com a esperança de voltar para a família.
Nós sobrevivemos à uma pandemia mundial que mudou diversos aspectos sociais e culturais, desde a forma como nos relacionamos até a forma como trabalhamos e como consumimos. O mundo se tornou mais virtual. E a importância histórica que essas mudanças têm, acho que só conseguiremos enxergar dentro de alguns anos. Livros como o do Ricardo Lísias deixam mais palpável esse momento tão importante na história da humanidade.